Cerrado
Cerrado, ‘berço das águas’ do Brasil, está sendo destruído
11 de outubro de 2018Aos 33 anos, o historiador e técnico agrícola Samuel Leite Caetano declarou para a plateia do Museu do Amanhã que nunca tinha estado num lugar tão bonito. Aos 66, Maria do Socorro preferiu falar em pé, do alto de seu par de sandálias douradas, para lembrar que vem de um lugar, o… Ver artigo
Aos 33 anos, o historiador e técnico agrícola Samuel Leite Caetano declarou para a plateia do Museu do Amanhã que nunca tinha estado num lugar tão bonito. Aos 66, Maria do Socorro preferiu falar em pé, do alto de seu par de sandálias douradas, para lembrar que vem de um lugar, o Cerrado, que é considerado o berço das águas:
"Se eu preservo minha fonte eu vou preservar a água das cidades", declarou, olhando em volta.
Fátima Barros, nascida em 72, trouxe a emoção na voz para falar sobre as ameaças que o Cerrado está sofrendo, sobretudo por parte do agronegócio. Uma emoção que lhe dá coragem e vontade de partir para o enfrentamento: "Não temos medo da tempestade porque nós somos a tempestade".
Já Maria Emilia Pacheco, que é mineira mas mora no Rio, e que já presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) lembrou como é distante, não só fisicamente, do carioca e do Sudeste, a região do Cerrado. Mas não devia ser assim: "Estamos falando de uma questão nacional, a vida no Brasil depende muito do Cerrado".
Dediquei parte da minha manhã de ontem (9) a ouvir histórias do Cerrado no Museu do Amanhã, no evento "O Cerrado em toda parte" organizado em parceria pelas ONGs ActionAid e Rede Cerrado. Katia Favilla, secretária executiva da Rede, lembra que parte deste distanciamento das questões de uma região tão importante para o Brasil foi porque houve um tempo "em que os povos e comunidades tradicionais lutaram para ficar invisíveis", já que isso era uma garantia de sobrevivência e de permanência em seus territórios.
Hoje não é mais assim. A luta é pela visibilidade, para mostrar aos povos de todas as regiões do Brasil que existe um lugar, que ocupa um quinto do território do Brasil e se estende por 12 estados, considerado a savana mais rica em biodiversidade do mundo, que está sendo dia a dia desmatado, espoliado, para dar lugar a pasto e plantações de monoculturas.
"Falar sobre o Cerrado e sobre seus povos no Museu do Amanhã é trazer a discussão para as grandes cidades, é expor a um público já acostumado a falar de Amazônia, as riquezas de outro bioma extremamente importante para o país", diz Karia Favilla.
A sociedade civil está fazendo a sua parte, mostrando que não é preciso tanta destruição para alimentar as pessoas, como bem lembrou Maria Emilia Pacheco.
"Os portugueses quando chegaram ao Brasil encontraram o roçado dos indígenas, com alimentos que eles haviam descoberto, e destruíram tudo. Nós aqui da cidade estamos nos esquecendo de que os alimentos que temos hoje na mesa vem do trabalho que continua sendo feito pelas comunidades tradicionais", disse ela.
Por comunidades tradicionais entendem-se pessoas que vivem no mesmo lugar há muito tempo e criam com ele uma relação de afeto, não de negócio. É esta a maior diferença, como explica Maria de Fátima:
"A relação do agronegócio com o Cerrado é um negócio e a nossa relação é de vida, de amor, de afetividade. Não há limites para o capital. Temos feito a resistência. Minha família está na Ilha de São Vicente (no Tocantins) há 130 anos e ainda assim enfrentou um processo jurídico que nos expulsou em 2010, por um fazendeiro que conseguiu retirar de lá a comunidade. Conseguimos retornar, enfrentamos um processo para comprovar nossa ancestralidade, o que é uma violência para os povos quilombolas. Precisei de papel de cartório para dizer que sou quem sou. Lutamos contra tudo isso de pé".
A violência contra os povos que lá estão há tanto tempo, por si só, já é um absurdo. O descaso com o meio ambiente aumenta a sensação de que não se está percebendo o tamanho da tragédia. Os números, divulgados ontem no evento que durou o dia inteiro, apoiado pelo Museu, dão conta de como é preciso que o poder público lance um olhar para a região. Vejam só:
- Só entre 2016 e 2017, o Cerrado perdeu o equivalente a mais de 1 milhão de campos de futebol, segundo dados do próprio Ministério do Meio Ambiente. Hoje, a cobertura florestal do bioma ocupa menos da metade de sua área original;
- O Matopiba (nome da região composta pelos estados do Maranhã, Tocantins, Piauí e Bahia) é a última grande remanescente de Cerrado contínuo e repleto de comunidades tradicionais e agricultores familiares. O Plano de Desenvolvimento Agrário, no entanto, vem promovendo a substituição de mata nativa por grandes extensões de monoculturas.
- Hoje, 36% de todo o gado e 63% de toda a soja plantada no país estão no Cerrado. E 30% da área virou pasto.
Dá para imaginar tanto desmatamento num terreno onde brotam as principais fontes de água doce do país? Um terreno que contribui com oito das 12 regiões hidrográficas, entre elas as bacias dos rios Araguaia/Tocantins, do Rio São Francisco e do Rio Paraná e abriga três aquíferos está sendo desmatado, segundo informações da Rede Cerrado, por projetos que desde os anos 70 estimulam a "limpeza" da vegetação para a produção.
Esta é a questão. As soluções são várias e não precisam de caras tecnologias para serem implantadas, o melhor é isso. A agroecologia, um conceito que pressupõe a prática da agricultura de maneira cuidadosa não só com o meio ambiente como levando em conta as pessoas, a cultura de cada povo, ensina muita coisa. Há cerca de um mês, as Fundação Boll e Rosa Luxemburgo lançaram no Rio o Atlas do Agronegócio, que aponta a agroecologia como uma alternativa. Ela já é utilizada em cultivos de arroz no mundo inteiro.
"A agroecologia promove a agricultura em pequena escala, em sintonia com os ecossistemas. Não é apenas um conjunto de técnicas agronômicas; é um processo político, social e transformador. Oferece ferramentas que dão às pessoas o direito de definir seus próprios sistemas de alimentação, agricultura, pecuária, pesca e as políticas que impactam estes sistemas como parte de um movimento internacional. A agroecologia não procura melhorar a agricultura industrial, mas substituí-la", diz o relatório.
É de transformação, portanto, que estamos falando. Uma transformação que dê passos para a frente, que ouça atentamente o que cientistas do mundo todo estão falando sobre as respostas que a natureza dá aos impactos que vem sofrendo. Isto, sim, nos colocará em posição de respeito na comunidade internacional de maneira sustentável.