Barragens

Pesquisadora conta a rotina de quem vive sob o medo do rompimento de barragens de minério

11 de março de 2019

    Barragem de rejeitos da Mina do Sapo, do projeto Minas-Rio, da Anglo American em Conceição do Mato Dentro — Foto: Arquivo Pessoal         Existe uma geração, que nasceu há pouco menos de dez anos na região mineira de Conceição de Mato Dentro, que só conhece água quando ela chega de… Ver artigo

 

 

Barragem de rejeitos da Mina do Sapo, do projeto Minas-Rio, da Anglo American em Conceição do Mato Dentro — Foto: Arquivo Pessoal

Barragem de rejeitos da Mina do Sapo, do projeto Minas-Rio, da Anglo American em Conceição do Mato Dentro — Foto: Arquivo Pessoal
 
 
 
 
Existe uma geração, que nasceu há pouco menos de dez anos na região mineira de Conceição de Mato Dentro, que só conhece água quando ela chega de caminhão pipa cedido pela empresa britânica Anglo American, que tem uma planta de mineração no local. Seus pais e avós, no entanto, conservam a lembrança de um tempo em que a água jorrava, vinda da Serra do Espinhaço, e permitia que eles tivessem plantações de arroz e feijão, não só para consumo próprio como para vender em feiras locais e, assim, garantir as outras necessidades básicas da família.
 
Pouco tempo depois de, em 2008, a empresa começar a operar ali, os agricultores perceberam que a água escasseava e desconfiaram que ela estava sendo usada para limpar o minério. A certeza veio quando o primeiro caminhão pipa chegou: era a Anglo American assumindo sua responsabilidade na escassez de água e tentando diminuir o problema.
 
São cerca de 400 as famílias atingidas pelo projeto Minas Rio, o segundo maior projeto de mineração do país depois de Carajás, da Vale. E hoje os pequenos agricultores locais têm que comprar – e pagar caro – o arroz e o feijão que consomem. Plantam milho, mas a roça é pequena.
 
A pesquisadora brasileira Ana Alvarenga, da Universidade Humboldt de Berlim, está no Brasil fazendo um trabalho sobre os impactos da mineração na produção de alimentos do modo camponês (agroecologia e agricultura familiar) e escolheu a região de Conceição do Mato Dentro para fazer o trabalho de campo, ou seja, entrevistas com os diretamente atingidos. Tinha acabado de pegar uma carona com o pessoal da Cáritas (entidade que atua na defesa dos direitos humanos), até Belo Horizonte, quando as notícias sobre o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho começaram a correr. Foi o tempo de chegar ao Rio, onde está hospedada, e voltar a Minas para conhecer, in loco, o resultado da tragédia.
 
Poucos dias depois de voltar de Brumadinho, Ana Alvarenga aceitou meu convite para uma conversa. As impressões da pesquisadora ajudam a alicerçar reflexões sobre nosso modelo de desenvolvimento, para ela “muito moldado no extrativismo”. E clareia também a situação em que se encontram agora os moradores de Conceição do Mato Dentro, que moram abaixo de uma barragem capaz de armazenar 370 milhões de metros cúbicos de rejeitos que e correm o mesmo perigo que os de Mariana e os de Brumadinho: “Depois de Mariana e de Brumadinho, eles agora vivem sob o signo do medo. E não é paranoia, sabemos bem o que acontece”, disse ela.
 
 
 
Ana Alvarenga — Foto: Arquivo Pessoal
 
Ana Alvarenga — Foto: Arquivo Pessoal
 
 
 
Abaixo, a entrevista na íntegra:
 
 
Nas entrevistas que você fez em Conceição do Mato Dentro foi possível colher evidências do impacto da mineração naquela região?
 
Ana Alvarenga – Sim. Estou falando só com mulheres camponesas diretamente atingidas pelo projeto da Anglo American. Elas moram a sete quilômetros desta mina e há evidências de sobra dos impactos na produção de alimentos e no acesso ao alimento por elas e pelas famílias delas.
 
 
Que tipo de impacto?
 
Ana Alvarenga – Todos produziam arroz e feijão – alimentação básica deles – e vendiam os excedentes em feiras. Hoje ninguém mais produz arroz por causa da escassez de água – a mineradora sugou os lençóis freáticos, as nascentes secaram – e por escassez de terra. Eles plantam o milho, mas não o suficiente. Eles falam disso o tempo todo. Os adolescentes viram acontecer, e as pessoas mais velhas, que viveram o tempo inteiro de uma forma e agora estão vivendo sem água – sobrevivem com água de caminhão de pipa que a própria empresa fornece – não têm mais terra para plantar.
 
 
Como é o regime de terras na região?
 
Ana Alvarenga – Cada família de quilombola tem um pedacinho de terra, mas não tem papel oficializando. Têm contrato com fazendeiros e fazendeiras grandes que, por gerações, são os donos de terras: eles deixam que as famílias produzam nas terras desde que metade da produção vá para eles. Já é uma relação violenta, escravocrata, mas era relativamente harmonioso. O que está acontecendo depois da chegada da Anglo American é que os próprios fazendeiros e fazendeiras, impactados pela mineração, não querem mais que eles plantem porque não sabem se vão vender a terra para a mineradora a qualquer momento. Muitos já venderam.
 
 
São cerca de 400 famílias, como você me falou. Essas pessoas deram licença para a mineradora operar?
 
Ana Alvarenga – Vou te contar um episódio que aconteceu e que responde a esta tua questão. Eu estava lá, fazendo uma entrevista, quando a empresa mandou avisar que no dia seguinte ia ter uma audiência em Belo Horizonte. É difícil reunir todo mundo porque lá não tem internet, telefone, é preciso ir às casas. Isto foi feito. E horas depois, a empresa manda outro funcionário avisar que a audiência tinha sido remarcada para janeiro. Foi o maior trabalho para desmobilizar todo mundo: tem que considerar que a região fica a três horas, de carro, de Belo Horizonte. E a audiência era lá. Bem, no dia seguinte ficamos sabendo que a audiência tinha, de fato, acontecido, sem a presença de nenhum dos diretamente atingidos pelo projeto. É isto o que acontece. E dez dias depois aprovaram a licença de uma nova etapa do projeto, que já é gigante.
 
 
Como foi a reação das pessoas quando aconteceu a tragédia de Brumadinho?
 
Ana Alvarenga – Eles agora vivem sob o signo do medo, e não é paranoia. Fui a Brumadinho para entender melhor a situação das pessoas, mas só conseguia pensar nos moradores de Conceição do Mato Dentro. Porque depois de Mariana eles já estavam vivendo com medo, pouca gente tomava banho de rio, imagine agora. Vou escrever uma parte da minha tese sobre Brumadinho. Lá a agricultura acabou totalmente. Mesmo as produções que não foram afetadas pela lama, porque eles não conseguem mais vender nada. Em Brumadinho é diferente do que em Conceição do Mato Dentro, até onde eu pude perceber: eles viviam muito da venda dos produtos para Belo Horizonte.
 
 
De que maneira as empresas – tanto a Vale quanto a Anglo American – lidam com a existência das barragens? Elas passam a ideia de que é uma coisa perigosa?
 
Ana Alvarenga – Quando comecei a fazer as entrevistas em Conceição do Mato Dentro, e só tinha acontecido o rompimento de Mariana, a empresa dizia que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Aí veio Brumadinho e eles ensaiaram ouvir um pouco mais as pessoas. Teve até uma audiência extraordinária dentro de uma comunidade que não tinha sido ainda diagnosticada como atingida, e ficou decidido o reconhecimento desta comunidade como atingida.
 
 
O que significa ser reconhecida como atingida?
 
Ana Alvarenga – É uma grande questão: no estudo de impacto ambiental feito pela Anglo American, aquelas pessoas não eram consideradas como atingidas porque não têm o papel da posse da terra. Os atingidos são apenas os donos da terra. Mas na audiência, com ajuda dos movimentos que estão sempre apoiando aquela comunidade (o Movimento pela Soberania Popular na Mineração, as universidades de Juiz de Fora e UFMG, a Cáritas, o Coletivo Margarida Alves, com apoio do Ministério Público), eles tiveram essa conquista. De boca, nada assinado. Mas o discurso da empresa sempre é de que não tem perigo nenhum, de que só está fazendo isso para tranquilizar aquelas pessoas.
 
 
Os atingidos têm direito a quê?
 
Ana Alvarenga – Eles podem sair dali, serem reassentados com verba da empresa. O ruim é que estão chegando a esse ponto, mas é por desespero. Muitas não querem sair e dizem, claramente: “Quem tem que sair daqui é a barragem, não nós”. Olha, é preciso deixar claro que eu não estou dizendo que é maravilhoso o jeito que eles viviam antes de a mineradora entrar lá, porque não era. Não quero romantizar. Tinham uma vida bem difícil. Mas está claro que quando a mineradora destrói o meio de vida de uma comunidade como esta, ela está produzindo mais pobreza e mão-de-obra barata para aqueles que decidem abandonar a atividade agrícola e ingressar na empresa, e criando um grupo de consumidores porque eles vão parar de comer o que produzem e começam a comprar no mercado.
 
 
Sempre que se põe na mesa o debate sobre impactos socioambientais que a atividade de mineração provoca, há o racionalismo dizendo que sem minério o mundo que conhecemos não existiria. E ficamos, assim, numa espécie de beco sem saída, entre o desenvolvimento ou a preservação. Essa discussão vem sendo feita no mundo acadêmico?
 
Ana Alvarenga – Sim, há pesquisadores fazendo um trabalho crítico, tanto quanto a produzir quanto consumir. Na Europa é interessante notar que o foco maior é o consumo porque eles sabem que consomem muito. Mas há também uma exacerbação, de achar que é tudo pelo consumo: vou ficar vegano, vou andar de transporte público, e tudo funcionará? Sabemos que é mais complexo do que isso porque o sistema de acumulação intensa de capital se molda, vai criando outras intensidades de exploração.
 
 
O que te levou a fazer essa pesquisa para uma universidade alemã?
 
Ana Alvarenga – Meu objetivo foi mostrar vozes que estão muito distante deles. Os europeus não entendem bem quando se fala de agroecologia, de produzir de forma diversificada, acham exótico. O mais interessante é perceber que o urbano europeu moderno está descobrindo agora o jeito “novo” de plantar em casa e ter contato com o alimento. Ou seja: os quilombolas e os indígenas, vistos aqui como atrasados, estão anos à frente.